quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Alceu Valença lança CD com releituras de canções pouco conhecidas

MARCUS PRETO
Colaboração para a Folha
04/03/2009

Clarice Lispector escreveu uma vez que a biografia mais profunda de uma pessoa só pode ser definida de fato por meio da história de seus fracassos.
Pois foi recorrendo a "fracassos" acumulados em mais de 35 anos de carreira musical que Alceu Valença ergueu seu novo trabalho, "Ciranda Mourisca".

05.abr.2005/Fernando Moraes/Folha Imagem
Cantor Alceu Valença lança seu novo trabalho, "Ciranda Mourisca", formado por "fracassos"
Nele, o cantor e compositor pernambucano relê canções suas que nunca chegaram ao rádio, não entraram na trilha de nenhuma novela e jamais são lembradas nas compilações de seus melhores momentos.
O título do CD indica outro critério sob o qual cada uma de suas 12 faixas foi escolhida, entre tantas disponíveis nos mais de 20 álbuns de estúdio gravados por Alceu até aqui.
Além da sensação de ineditismo, elas precisavam se adaptar bem a uma levada "acirandada", que tornasse ainda mais evidentes as históricas influências árabes que, como no fado, a música produzida no Nordeste do Brasil emaranhou em seu DNA desde os tempos de Pedro Álvares Cabral. Na prática, nada muito estranho ao universo criativo do músico, que compõe sob essa estética desde sua estreia solo em "Molhado de Suor", de 1974.
Foi deste seu primeiro álbum que saiu o maior número de faixas para "Ciranda Mourisca". Originalmente ásperas, quase roqueiras (e desde sempre muito árabes), "Dente de Ocidente", "Deusa da Noite (Dia Branco)", "Mensageira dos Anjos" e "Molhado de Suor" voltam mansinhas nas versões de 2009. Os arranjos essencialmente acústicos de agora (uma guitarra aqui e ali quebra essa regra) realçam a natural suspensão harmônica dessas canções, aquele recurso que, na prática, gera no ouvinte uma sensação de passeio num tapete mágico, de levitação.
Mas a seleção abrange várias outras fases da carreira de Alceu. Do álbum "Estação da Luz" (1985) foram pescadas "Chuva de Cajus" e "Sino de Ouro". "Íris" saiu de "Leque Moleque" (1987) e "Loa de Lisboa", de "Andar, Andar" (1990). De "Maracatu, Batuque e Ladeiras" (1994) vieram "Pétalas", "Amor que Vai" e "Marajá". Lançada por Elba Ramalho, "Ciranda da Rosa Vermelha" é a única que permanecia inédita na voz do autor até aqui.

Parada de fracassos
É útil lembrar que, pelo menos em música popular, sucesso é um trabalho de marketing. Todas as canções que alcançam grande popularidade têm esse destino porque foram escolhidas e "alimentadas" para tal fim. E, mais que os próprios artistas, são as gravadoras que decidem qual canção de um álbum merece receber investimento para se tornar um hit. Isso não tem nada a ver com arte e acaba jogando na sombra pequenas obras-primas para que faixas mais "radiofônicas" se sobressaiam.
É por isso que um trabalho como este de Alceu pode ser tão interessante. O autor tenta desfazer injustiças passadas e dá a algumas de suas canções pessoalmente preferidas uma segunda oportunidade de chegar à luz, de ocupar um lugar de maior destaque no cancioneiro de seu país.
Traz da escuridão letras de sabor completamente novo. Versos poderosos como "O amor se planta e ganha a força das raízes/ Oh, Íris, quando vieres, caçaremos arco-íris/ E borboletas só pra tu te distraíres", de "Íris", não mereciam continuar escondidos. Voltaram.
É bem pouco provável que Alceu consiga emplacar, mesmo assim revitalizados, estes seus antigos fracassos nas atuais paradas de sucesso, no rádio, nas novelas. De todo modo, está traçada aqui sua verdadeira biografia, escrita com o que ele deixou que tirassem dele --e de nós-- nesses anos todos. E, isso é certo, elas dizem muito mais sobre o artista do que qualquer apanhado de seus "greatest hits".

"Ciranda Mourisca"
Artista: Alceu Valença
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 28,90, em média
Avaliação: bom

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