sexta-feira, 8 de maio de 2009

Astúcia narrativa estelar

Jornal de Brasília
08/05/2009

Assim como na vida existem os compulsivos e, no crime, serial killers, na ficção há criadores cuja mente funciona com base numa lógica serial. Destes faz parte, certamente, o produtor-diretor-roteirista J.J. Abrams. Depois de inventar uma superespiã cujo maior desafio era decifrar a própria genealogia (Alias) e de recuar à originalidade do fantástico de Além da Imaginação com Lost, Abrams se lançou à aventura do cinema. Mas foi pelo atalho de uma antiguidade da TV que ele chegou à grande tela com Missão: Impossível 3. Em seguida, reanimou os arquétipos dos monstros televisivos dos anos 50 no subestimado Clo - ver field. Agora, tenta alcançar a fronteira final e consegue trazer o futuro para o presente.

Como na muito frequentada lista de heróis recauchutados para o cinema recente (Homem-Aranha, Batman), Abrams reinventa uma origem para os míticos personagens de Star Trek, franquia exaustivamente explorada nas gerações e regenerações produzidas para a TV e na série de longas feitos desde fins dos anos 70. O recuo faz parte do procedimento serial, e Abrams sabe que, para funcionar como história, a serialidade exige um ponto de partida e uma progressão.

Star Trek desempenha, portanto, a função do piloto, "apagado’’ da série original e das versões disponíveis em DVD. De The Cage (episódio zero do qual já havia "roubado" a abertura da
terceira temporada de Lost), Abrams extrai o prólogo do filme, no qual recria o passado familiar do capitão Kirk. O diretor nos mostra a infância e a adolescência dele e também a de Spock, o filho mestiço de pai vulcano e mãe humana, e a forma como os dois se conheceram.

Explicadas as origens, o filme se concentra nas aventuras da primeira viagem da tripulação da Enterprise, com Kirk, Spock, Uhura, Sulu, Chekov e Scotty, que juntos enfrentam o malvado Nero, um vingativo romulano e personagem inexistente na série original.

Nessa estratégia de "prequela’’ não há novidades, apenas a eficiência de promover o encontro de um relato preexistente com dois tipos de público. Deumlado, aquele que reencontra seus heróis. De outro, os que, por serem muito jovens, não conheciam a história ou a consideravam "velharia". Desse modo, o filme reúne pais e filhos num mesmo público.

A opção também proporciona outra vantagem: oferecer aos fãs um prazer arqueológico, mostrando-lhes situações pressupostas, e introduzir o novato num universo complexo, tendo a juventude dos personagens como porta de acesso. Assim, o filme mata quatro coelhos em uma cajadada. Essa astúcia narrativa de homem de TV, porém, se completa com um controle rigoroso do ritmo e das ações no filme. É óbvio que cada sobressalto é rigorosamente cronometrado, impedindo o espectador adestrado na velocidade do cinema-game de se entediar.

Com essa visão blockbuster, Abrams define também a imagem, desde as espetaculares vistas gerais da Enterprise até a estrutura dos cenários, a luminosidade constante no lado da Frota Estelar contra a obscuridade arcaica da Narada, nave dos vilões romulanos, que reativa o maniqueísmo que ecoa a geopolítica contemporânea.

Ao espectador resta apenas uma escolha: viajar.

Da redação do Jornal de Brasília

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