terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Realidade e fantasia juntas na obra de Miguel de Cervantes

Tribuna do Brasil (DF)
27/01/2009
Autor: Milene Sodré
Dom Quixote e Sancho Pança atravessam a Espanha e o tempo para contar suas aventuras


Um cavaleiro andante que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro resolveram, no século 17, caminhar pela Espanha à procura de aventuras.

Essa história, a princípio simples, elevou seu criador ao posto de um dos maiores escritores da literatura mundial. Estamos falando do espanhol Miguel de Cervantes que, em 1605, escreveu o livro “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”.

Naquela época, os livros de cavalaria eram muito populares. Narravam histórias fantásticas, com personagens nobres, puros e que lutavam pelo amor, pela paz e pela justiça. Miguel de Cervantes resolveu inovar e criou um personagem que gostava demais de ler esses livros. Gostava tanto que enlouqueceu, a ponto de querer imitar os seus heróis. Assim nasceu Dom Quixote. O nobre endoidecido andava pela Espanha como se fosse um desses grandes homens dos livros de cavalaria. Mas para que sua aventura fosse parecida com as maravilhosas proezas daqueles heróis, a imaginação delirante de Quixote fez alguns ajustes na realidade. Tratava monges como feiticeiros e lutava com moinhos de vento como se fossem gigantes malfeitores, convencendo-se de que apenas homens destemidos como ele poderiam derrotá-los e, assim, trazer paz e justiça para a Espanha.

A história de Dom Quixote encantou muitas pessoas. No mesmo ano em que o livro foi lançado, foram feitas seis edições. No que se refere a traduções, a obra só é superada pela Bíblia. Além disso, inspirou peças de teatro, óperas, balés, filmes, programas e desenhos animados. Os espanhóis Salvador Dalí e Pablo Picasso e o brasileiro Cândido Portinari foram alguns dos pintores que tentaram dar forma aos personagens de Cervantes.

O escritor brasileiro Monteiro Lobato também era fã da história e escreveu Dom Quixote para crianças, contado por Dona Benta. A herança de Dom Quixote é tão forte que existe até um adjetivo – quixotesco – para se referir aos homens que, como o cavaleiro, são extremamente idealistas. Ao escrever Dom Quixote, Miguel de Cervantes pretendia ridicularizar os livros de cavalaria, que eram muito populares na sua época, por narrarem histórias fantásticas cheias de realce e pompa na ação dos personagens.

Assim, em seu livro, o personagem principal é um nobre que enlouqueceu porque lia sem parar esses romances, e que passou a querer imitar seus heróis preferidos. Amadis de Gaula, Diana, La Araucana e Orlando Furioso são alguns desses livros citados por Cervantes como pertencentes à biblioteca de Dom Quixote.

O nobre chamava-se, na verdade, Alonso Quijano e acreditava de tal forma nos ideais cavalheirescos de amor, paz e justiça que se preparou para sair pelo mundo em defesa desses valores. Numa região espanhola chamada Mancha, Alonso Quijano escolheu um título bonito para usar: Dom Quixote de la Mancha. Depois, apelidou um cavalo velho de Rocinante e elegeu uma mulher ideal a quem dedicou seu amor: uma camponesa que ele viu como uma dama da alta nobreza e a quem deu o nome de Dulcinea del Toboso. Em suas aventuras, Quixote levou junto seu fiel escudeiro, o pobre camponês Sancho Pança. No livro, Dom Quixote representa o lado espiritual e nobre da natureza humana, o amor do honesto e do ideal, tão valorizado nos tais romances de cavalaria. Já o cavaleiro Sancho Pança, cheio de responsabilidades e preocupações, vivia num mundo oposto ao de seu amigo. Aliás, a amizade entre o cavaleiro e o escudeiro é considerada uma das manifestações de maior respeito entre pessoas diferentes descritas na literatura.

Na história de Cervantes, os dois saem pela Espanha em busca de aventuras. A narrativa tem dois planos: o imaginário, que seria o mundo do cavaleiro, e o realista, representado pela visão do escudeiro. Talvez pelo modo como soube dosar imaginação e realidade, Cervantes ficou conhecido como um dos maiores escritores do mundo. Quando constrói o plano da imaginação, ele mantém as dimensões e a estrutura do mundo real. E consegue isso através do amor que Dom Quixote dedica a seus sonhos. O cavaleiro vive neles como se só existisse aquela maneira de ver o mundo. Ele ama, respeita e entende tão bem esse mundo que o leitor, às vezes, se confunde. Esse fato é de verdade ou é mais um dos sonhos do Quixote? Quando Dom Quixote volta para casa, já está bastante cansado. Ele recupera a razão e volta a ser de novo o nobre Alonso Quijano, mas o próprio Sancho Pança, seu oposto no plano imaginário, o anima a partir em busca de novas façanhas heróicas! Assim, entre realidade e imaginação, Miguel de Cervantes não toma partido de nenhum dos dois mundos. Fica a cargo do leitor perceber que talvez não exista nada real que não tenha um pezinho na imaginação, nem nada que, vindo da imaginação, não possa pisar devagarinho na nossa realidade.

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